Sensação de perda (31/10)
Antes as pessoas tinham mais pudor, vergonha do que lhes ia na alma. Cuidavam de manter a boçalidade algo recolhida, para não passar vexame. Não era bonito exibir publicamente a própria estupidez
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva está com câncer, e é compreensível que as reações projetem os cenários políticos, a depender dos desdobramentos clínicos. Compreensível e questionável.
Afinal, Lula está bem vivo e em tratamento.
Outro detalhe espantoso é o ambiente de Fla-Flu nas chamadas redes sociais sobre a doença do ex-presidente. Ambiente que apenas reflete fenômenos mais amplos e mais profundos na sociedade.
Pensando bem, não é tão espantoso assim.
A política brasileira vem perdendo certo traço característico dos tempos em que se lutava contra a ditadura. Foi quando comecei a prestar atenção nas coisas. Procuro seguir nessa linha. Não sei como era antes.
Confesso que sinto alguma saudade daquele tempo. Talvez seja passadismo, é humano guardar só as coisas boas e limar as ruins, mas não importa.
As pessoas tinham mais pudor, vergonha do que lhes ia na alma. Cuidavam de manter a boçalidade algo recolhida, para não passar vexame. Não era bonito exibir publicamente a própria estupidez.
Mesmo na guerra, é preciso respeitar a dignidade do inimigo. Se a ancestralidade antopofágica brasileira serve para algo, deveria ser para recolher a sabedoria daqueles índios: alimente-se do inimigo morto, para incorporar a coragem dele.
Onde estão as raízes dessa perda de limites?
Um vetor é a internet, ao dar voz a quem não tem vida pública. Políticos e jornalistas são seres sujeitos ao policiamento ostensivo do público, agora em tempo real. Então precisam andar na linha, ou pelo menos tentar. Diferente do sujeito que só desopila o fígado.
Uma pseudomilitância primitiva e selvagem. Com todas as características de uma multidão de anônimos. Inimputáveis, livres para odiar até a última gota.
Mas é a democracia, e não adianta reclamar, pois ela veio para ficar. E é bom mesmo que fique. Inclusive para termos como medir a temperatura do que vai pela cabeça das pessoas. Achou feio, repugnante? Paciência.
Mas essa é a superfície. Há outro vetor em ação.
Dirão que a cordialidade é um traço elitista da política brasileira, um comportamento possível apenas quando os atores eram socialmente da mesma turma. E que a incoporação de novos personagens fará, obrigatoriamente, desandar a maionese. Será?
Prefiro acreditar que o problema está mais na esfera subjetiva do que na objetiva. A degenerescência não é inevitável.
O segundo vetor é conceitual. A política entendida como arte de eliminar o adversário, e não apenas de sobrepujá-lo garantindo-lhe a legitimidade necessária à sobrevivência.
E aí, quando aparece a oportunidade de uma eliminação real, física, o vulcão entra em erupção. Os menos burros simulam, os menos espertos escancaram.
Agora é com Lula. Como aconteceria com sinal trocado se fosse FHC, ou outro tucano de alta plumagem.
Uma pena que tenhamos chegado a isso. Pode parecer meio bobo, meio incompatível com a frieza e a objetividade que deveriam orientar um colunista político. Mas minha sensação é esta, de perda.
Sinto que perdemos alguma coisa em algum ponto da caminhada.
Ignorância
Entre as irracionalidades que desfilam na rede sobre a doença do ex-presidente, uma desafia-o a tratar-se no SUS.
Em qualquer lugar do mundo os chefes políticos tratam a saúde nos melhores centros médicos. Quando precisam se internar, vão para os melhores hospitais.
O Brasil tem excelentes hospitais privados, e também excelentes hospitais públicos. Um deles é o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo, inaugurado recentemente. É uma boa herança dos governos do PSDB.
Lula preferiu ir ao Sírio-Libanês, onde já está habituado a tratar-se, e ao qual também recorreram o então vice-presidente José Alencar e a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, quando diagnosticados com a doença.
Até porque Lula não sabia que estava com câncer.
Se preferir tratar-se no Icesp receberá atendimento de primeiríssima. Quem o utiliza sabe.
Falar mal do SUS, genericamente, para atacar governos ou governantes pode parecer esperto. Mas é apenas exibição de ignorância.
Coluna publicada nesta segunda (31) no Estado de Minas.
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