Leis que retroagem? (20/08)
Seria interessante se os candidatos explicassem o que entendem por Estado de direito, e de que modo irão defender as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição
O combate à corrupção não pode ser feito ao custo de rasgar a Constituição. O mesmo vale para outros combates, mas o Ficha Limpa tornou urgente a discussão. A lei, infraconstitucional, não tem o poder de alterar a Carta, ainda que esta seja, no frigir dos ovos, o que os ministros do Supremo Tribunal Federal entendem que ela é.
Está aliás na hora de o STF colocar ordem na bagunça do Ficha Limpa, aplicar um freio de arrumação. Ou a lei retroage ou não. Intolerável é a coisa ficar ao sabor das influências políticas sobre os tribunais nos estados. O Ficha Limpa é uma boa ideia, que corre o risco de virar instrumento arbitrário. Com a palavra, o STF.
Aqui entre nós, lei que retroage é um atentado ao Estado de direito democrático e à Constituição. Mas esperemos pelo que vai dizer a Suprema Corte.
O que fazer quando na esfera da corrupção, ou de outros problemas sociais, a democracia aparece como “obstáculo” a que a sociedade encontre o paraíso? Aqui, o “vou colocar todos os corruptos na cadeia” aparece como irmão siamês do “não se pode falar em democracia numa sociedade tão desigual quanto a nossa”.
O impulso autoritário está no DNA das diversas camadas da organização social brasileira. A primeira frase entre aspas no parágrafo anterior é tipicamente “da direita”, enquanto a segunda é “da esquerda”. Mas são xifópagas.
É preferível alguns corruptos estarem fora da cadeia, e mesmo poderem disputar as eleições, do que o sistema jurídico brasileiro engolir a barbaridade da norma legal que retroage a partir da data de vigência. Se o Ficha Limpa pode, por que não as outras leis?
E é preferível certa política social não ser executada, se a execução implicar lesão a direito fundamental. Paciência, é o custo de viver numa democracia. Uma ótima relação custo/benefício.
Mas admito que tais ideias não são muito populares. Para que acabem entranhadas no nosso tecido social, seria necessária uma das duas opções: ou a forte e continuada pressão popular para inverter a relação deformada entre a liberdade excessiva do Estado e o deficit de liberdade do indivíduo, ou a sucessão de governos empenhados em autolimitar-se.
Aqui o leitor poderá argumentar que uma coisa não existe sem a outra, e terá dose de razão. Veja-se por exemplo a alternância de poder no último meio século no Brasil. Passaram pela cadeira — ou estão nela — todas as correntes políticas e históricas relevantes. Todas sem exceção adaptaram-se rapidamente aos princípios da absolutização do líder e da supremacia do Estado. Em palavras ou atos.
Pois a sociedade brasileira organizou-se a partir do Estado e carrega essa marca de nascença. Mas a deformação não é incurável, pode e vai sendo corrigida à medida que aumenta nosso grau de complexidade social. O crescimento da classe média não terá vindo em vão.
Outro dia a candidata Dilma Rousseff deu uma declaração interessante, ao falar sobre o proposto (por ela) ministério das pequenas e das médias empresas. Disse que a multiplicação dessas empresas é uma questão democrática. Fato.
Mas é também verdade que o governo do PT estimula a oligopolização em diversas esferas.
São debates estratégicos, e campanha eleitoral não é propriamente um lugar para tertúlias doutrinárias. Mas seria interessante se os candidatos explicassem o que entendem por Estado de direito, e de que modo irão defender as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição. E como avançar na democracia.
Poderiam começar condenando a tese de fazer retroagir as leis novas. Mesmo que elas contem com a simpatia geral. Como é o caso do Ficha Limpa.
Nus
A única coisa realmente indispensável numa campanha eleitoral é cada candidato dizer tudo que pensa sobre o adversário, ou sobre o partido adversário. Ou sobre os aliados do partido adversário. É fundamental para a escolha soberana do eleitor.
Nesse aspecto, parece que a eleição presidencial de 2010 não vai decepcionar. Aqui, os apelos pelo “alto nível” devem ser vistos com cuidado. Nível alto mesmo é quando os políticos ficam nus diante da sociedade.
No sentido figurado, claro.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta sexta (20) no Correio Braziliense.
twitter.com/AlonFe
youtube.com/blogdoalon
Para inserir um comentário, clique sobre a palavra "comentários", abaixo
O combate à corrupção não pode ser feito ao custo de rasgar a Constituição. O mesmo vale para outros combates, mas o Ficha Limpa tornou urgente a discussão. A lei, infraconstitucional, não tem o poder de alterar a Carta, ainda que esta seja, no frigir dos ovos, o que os ministros do Supremo Tribunal Federal entendem que ela é.
Está aliás na hora de o STF colocar ordem na bagunça do Ficha Limpa, aplicar um freio de arrumação. Ou a lei retroage ou não. Intolerável é a coisa ficar ao sabor das influências políticas sobre os tribunais nos estados. O Ficha Limpa é uma boa ideia, que corre o risco de virar instrumento arbitrário. Com a palavra, o STF.
Aqui entre nós, lei que retroage é um atentado ao Estado de direito democrático e à Constituição. Mas esperemos pelo que vai dizer a Suprema Corte.
O que fazer quando na esfera da corrupção, ou de outros problemas sociais, a democracia aparece como “obstáculo” a que a sociedade encontre o paraíso? Aqui, o “vou colocar todos os corruptos na cadeia” aparece como irmão siamês do “não se pode falar em democracia numa sociedade tão desigual quanto a nossa”.
O impulso autoritário está no DNA das diversas camadas da organização social brasileira. A primeira frase entre aspas no parágrafo anterior é tipicamente “da direita”, enquanto a segunda é “da esquerda”. Mas são xifópagas.
É preferível alguns corruptos estarem fora da cadeia, e mesmo poderem disputar as eleições, do que o sistema jurídico brasileiro engolir a barbaridade da norma legal que retroage a partir da data de vigência. Se o Ficha Limpa pode, por que não as outras leis?
E é preferível certa política social não ser executada, se a execução implicar lesão a direito fundamental. Paciência, é o custo de viver numa democracia. Uma ótima relação custo/benefício.
Mas admito que tais ideias não são muito populares. Para que acabem entranhadas no nosso tecido social, seria necessária uma das duas opções: ou a forte e continuada pressão popular para inverter a relação deformada entre a liberdade excessiva do Estado e o deficit de liberdade do indivíduo, ou a sucessão de governos empenhados em autolimitar-se.
Aqui o leitor poderá argumentar que uma coisa não existe sem a outra, e terá dose de razão. Veja-se por exemplo a alternância de poder no último meio século no Brasil. Passaram pela cadeira — ou estão nela — todas as correntes políticas e históricas relevantes. Todas sem exceção adaptaram-se rapidamente aos princípios da absolutização do líder e da supremacia do Estado. Em palavras ou atos.
Pois a sociedade brasileira organizou-se a partir do Estado e carrega essa marca de nascença. Mas a deformação não é incurável, pode e vai sendo corrigida à medida que aumenta nosso grau de complexidade social. O crescimento da classe média não terá vindo em vão.
Outro dia a candidata Dilma Rousseff deu uma declaração interessante, ao falar sobre o proposto (por ela) ministério das pequenas e das médias empresas. Disse que a multiplicação dessas empresas é uma questão democrática. Fato.
Mas é também verdade que o governo do PT estimula a oligopolização em diversas esferas.
São debates estratégicos, e campanha eleitoral não é propriamente um lugar para tertúlias doutrinárias. Mas seria interessante se os candidatos explicassem o que entendem por Estado de direito, e de que modo irão defender as garantias fundamentais estabelecidas na Constituição. E como avançar na democracia.
Poderiam começar condenando a tese de fazer retroagir as leis novas. Mesmo que elas contem com a simpatia geral. Como é o caso do Ficha Limpa.
Nus
A única coisa realmente indispensável numa campanha eleitoral é cada candidato dizer tudo que pensa sobre o adversário, ou sobre o partido adversário. Ou sobre os aliados do partido adversário. É fundamental para a escolha soberana do eleitor.
Nesse aspecto, parece que a eleição presidencial de 2010 não vai decepcionar. Aqui, os apelos pelo “alto nível” devem ser vistos com cuidado. Nível alto mesmo é quando os políticos ficam nus diante da sociedade.
No sentido figurado, claro.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada nesta sexta (20) no Correio Braziliense.
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9 Comentários:
Mas no caso da Ficha Limpa a retroatividade é de um tipo diferente. Uma coisa é você dizer "olhar para a lua é crime" e aí punir retroativamente todo mundo que já olhou para a lua antes da lei. Este tipo de retroatividade não é mesmo admissível num regime democrático.
Por outro lado, ninguém comete um crime no pretérito. O Ficha Limpa atinge quem *já cometeu* crimes e *foi condenado*. Quem comete um crime sabe ou deveria saber que esse ato pode desqualificá-lo para certas atividades no futuro.
Além do mais, disputar eleições não é um "direito humano". Não é algo como proibir o sujeito de trabalhar ou de possuir propriedade por ter um cometido um crime no passado. É proibir que ele assuma um CARGO PUBLICO, que mexe com o coração da democracia e com os direitos dos outros.
Não sou jurista mas não existem absolutos no Direito, e a tentativa de aplicar certas regras de forma absoluta é por si só um risco à democracia. Vamos a outro exemplo: presunção de inocência, que é exageradamente e recursivamente aplicada no Brasil.
Uma coisa (certa) é você não deixar o sujeito trancafiado indefinidamente enquanto não for julgado por um crime. A outra é você permitir que, digamos, um funcionário público exerça sua função e seu poder sob suspeição de crime relacionado, como infelizmente é comum no Brasil.
Um delegado de polícia tortura um preso, e aí por conta da "presunção de inocência" ele continua delegado. É um caso em que obviamente a presunção de inocência não poderia valer, porque é uma presunção destinada a proteger o indivíduo e não privilégios. Conjugue isso com a demora da Justiça e você tem aí uma impunidade completa e total na prática.
Por último, gente que sabe mais do que eu tem me afirmado que a legislação eleitoral já vigente era suficiente para barrar fichas-sujas na eleição, e a lei da Ficha Limpa é uma mistura de pirotecnia e reiteração de leis já vigentes. Se é isso mesmo, não há que reclamar de retroatividade...
A ficha é suja
Resisto a apoiar a tal Ficha Limpa e discretamente comemoro sua formatação definitiva, que a encaminha para o limbo jurídico. Ela proporcionaria um recrudescimento da já alarmante putrefação institucional do Judiciário.
Qualquer juiz obscuro, das menores e mais remotas comarcas, poderia destruir projetos políticos legítimos. Lideranças regionais seriam perseguidas e arruinadas. Basta contrariar os interesses do empresariado, da mídia, das boas famílias ou, afinal, dos próprios “doutores” togados, e sua vida virará um inferno.
Dêem-me cinqüenta mangos e lhes devolvo uma boa condenação por corrupção de menor, assédio moral, irregularidades trabalhistas diversas, etc. A exigência do colegiado apenas encarece o esquema; e, pior, o generaliza.
Uma reforma política de verdade suplantaria todos esses arremedos moralistas. Mas, sendo impossível aprová-la sem uma Assembléia exclusiva, os benfeitores do Congresso agradam o distinto eleitor com paliativos e indignações entorpecentes.
http://www.guilhermescalzilli.blogspot.com/
Para acabar com o festival de políticos "fichas sujas", não há como ficar procurando buscar em linguagem "juridiqês" formas de pleitear que a mesma não vigore desde já. Foi isso que tentaram os parlamentares que a votaram pressionados pelo fato de tratar-se de uma lei de inciativa popular, mas que por eles somente passaria a valer em 2012, nas eleições municipais, havendo tempo suficiente para alterá-la até 2014, quando a lei se voltaria para eles.
Prefiro ficar com a interpretação de cinco dos sete ministros do TSE segundo a qual a lei não altera as regras da eleição e sim as regras para registro de candidaturas.
Você está certo. O verdadeiro bem a ser protegido é o estado democrático de direito.
O fato não poderá ultrapassar o Direito.
A lei da Ficha Limpa é iniciativa salutar, no entanto, malformulada e assim capaz de provocar dano maior do que aquele que pretende evitar.
É pressuposto essencial do estado de direito o respeito a princípios elementares tal como a garantia ao cidadão que não haverá crime sem que lei anterior o preveja.
Inaceitável, pois, que a lei possa retroagir em prejuízo do réu. A penalidade a que o condenado sujeitar-se-á não será alterada no decurso do processo, da condenação ou ainda pior: a posteriori da mesma.
Muito menos haverá tratamento desigual. Culpado o condenado sem possibilidade de recurso.
Não é responsabilidade do indivíduo a justiça se fazer em prazo incompatível com a realidade social. Mude-se esse conjunto normativo.
Mesmo considerar a Ficha Limpa como parte de um processo de qualificatório, como pretende o TSE, ainda assim haverá de ser respeitada a prescrição de que a legislação eleitoral obedecerá prazo de um ano para sua vigência.
A insegurança jurídica criada com a edição da Lei, seguida da decisão do TSE - nem sempre acompanhada por TREs - contraria o interesse da sociedade brasileira, ainda mais diante da relevância das eleições. Não dá para ter eleitos "sub judice".
Não é recomendável que o STF permaneça silente diante dos acontecimentos. Urge que se manifeste.
Parabéns pelo artigo.
Esse projeto de lei reflete o atual estágio de degeneração em que se encontra a sociedade brasileira,pois até mesmo os senhores(juízes,procuradores,promotores)que deveriam ser os maiores defensores de nossa Constituição, estão aí a querer pisá-la em nome do combate à corrupção.
Para evitar casuísmos e pela própria essência do Direito e do Estado Democrático de Direito, respeitem a nossa Lei maior.
Acontece que a Lei da Ficha Limpa não "retroage", só cria novas condições para registro de candidaturas.
É tão difícil entender isso?
Vcs aí, que prestam concurso público, não tem a vida pregressa pesquisada antes de tomarem posse? E se houver algo desabonador em suas condutas, não é impedida esta posse?
E por que com a classe política deveria ser diferente???
Também quero ser tuiteira.
"Petistas chocados pq Serra usa Lula. Tucanos chocam-se qdo Dilma diz "fizemos" o Real, ou qdo visita o túmulo de Tancredo. E segue o baile"
Quanta contradição! É do caos que se faz o futuro, diz Daniel Baremboim.
Excelente, Alon.
Se esta moda da retroatividade pegar, vou querer utilizar a Contistituição de 1988 para conseguir, em Juízo, vários direitos que não haviam nas Cartas magnas anteriores! Aliás, tem gente que vai querer voltar ao que vigia no Império e ter uns escravozinhos também! Já que o TRE do DF e de alguns poucos outros acahm que pode tudo retroagir... Boa noite! Claúdio Castro Lima, DF.
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