O que ele diz. E o que faz (15/04)
Brasil e Estados Unidos voltam a estreitar relações militares. Lula busca novos espaços para afirmar a identidade brasileira no plano internacional, mas não coloca em dúvida nosso campo de alianças — especialmente bélicas — no hemisfério
O aquecimento progressivo da campanha eleitoral deixa meio escondida, relativizada, a assinatura do acordo de cooperação militar entre Brasil e Estados Unidos. O fato ganha importância analisado à luz das relações históricas entre os países.
Estados Unidos e Brasil tinham desde o pós-guerra laços militares formais, que foram sendo abalados ao longo da década de 1970. Por duas razões: os movimentos brasileiros para desenvolver tecnologia nuclear e as fortes pressões da administração Jimmy Carter (1977-1981) pelo respeito aqui aos direitos humanos.
O regime militar da época enxergava tais ações da Casa Branca, contra as torturas e a perseguição política de oposicionistas, como ingerência indevida nos assuntos internos do Brasil. Era ingerência, mas não indevida. E foi muito estimulada pela forte militância dos nossos exilados, na denúncia sistemática dos maus-tratos aos presos políticos brasileiros.
As pressões do governo Carter ajudaram na época a acelerar a abertura política e a atenuar o sofrimento de quem combatia o regime. É uma dívida que a democracia brasileira e os militantes da esquerda brasileira têm com o ex-presidente americano. Talvez não seja confortável para a biografia de alguns, mas é um fato.
Aliás, um problema enfrentado pela Boeing na concorrência agora para a venda dos caças à FAB vem dali: a dúvida entre os nossos militares sobre a confiabilidade dos parceiros americanos, dado o contencioso político e humanitário daquela época. Não deixa de ser curioso, ou ao menos paradoxal —visto que a atual administração brasileira inclui gente cujo sofrimento foi amenizado pela política de Carter.
Mas assim é a vida. De prático, interessa que agora Brasil e Estados Unidos voltam a estreitar relações militares. É a resultante de dois movimentos simultâneos do governo Luiz Inácio Lula da Silva: buscar novos espaços para afirmar a identidade brasileira no plano internacional, mas sem colocar em dúvida nosso campo de alianças — especialmente bélicas — no hemisfério.
Na concorrência dos caças, por exemplo, o Brasil exerce sua soberania, mas dentro de limites rigorosamente definidos. Dos três finalistas, um é americano e os demais são empresas de países aliados dos Estados Unidos. O assunto foi delimitado. Tirada a retórica, sobra a disputa comercial. E só.
A estratégia é parecida com a adotada por correntes da esquerda social-democrata na Europa Ocidental do pós-guerra. Aderiram ao “atlantismo” (referência à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar comandada por Washington), e assim deixaram de ser ameaça à hegemonia dos Estados Unidos, na época envolvidos com a Guerra Fria.
Uma troca razoável, que ajudou a garantir aos principais países europeus meio século seguido de estabilidade democrática e paz. Coisa inédita na vida recente do continente. Quem olha a Europa ocidental próspera e pacífica de hoje e vê ali uma dádiva da natureza deveria debruçar-se sobre o século e meio que vai das guerras napoleônicas ao fim da Segunda Guerra Mundial. Terá uma surpresa.
Talvez a Europa do pós-1945 seja um modelo a estudar. Uma região do mundo rapidamente recuperada do maior conflito bélico de todos os tempos, porque teve paz, estabilidade e investimentos maciços, inclusive em capital humano.
Foi um exemplo de recuperação não alicerçada em corridas armamentistas, ao contrário do entreguerras, o cenário do caldo de cultura para nazistas e fascistas.
Alguém duvida do efeito que terá na América do Sul meio século de democracia, ausência de conflitos militares e aceleração dos investimentos? Adaptado o mote de Juscelino Kubitschek, seriam 500 anos em 50.
E o Brasil emergirá maior e mais forte. Num cenário sem conflagrações regionais e sem ingerências externas, nossa liderança regional é automática. Ninguém aqui perto tem território, economia ou população para competir conosco.
É inclusive nosso principal cacife para ambicionar as cadeiras mais importantes da diplomacia mundial.
O presidente da República fala com frequência, e torna quase “natural” o analista usar os discursos dele como matéria prima.
Mais eficaz, entretanto, é prestar atenção ao que Lula faz. Em vez de só enxergar — ou ouvir — o que ele diz.
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
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O aquecimento progressivo da campanha eleitoral deixa meio escondida, relativizada, a assinatura do acordo de cooperação militar entre Brasil e Estados Unidos. O fato ganha importância analisado à luz das relações históricas entre os países.
Estados Unidos e Brasil tinham desde o pós-guerra laços militares formais, que foram sendo abalados ao longo da década de 1970. Por duas razões: os movimentos brasileiros para desenvolver tecnologia nuclear e as fortes pressões da administração Jimmy Carter (1977-1981) pelo respeito aqui aos direitos humanos.
O regime militar da época enxergava tais ações da Casa Branca, contra as torturas e a perseguição política de oposicionistas, como ingerência indevida nos assuntos internos do Brasil. Era ingerência, mas não indevida. E foi muito estimulada pela forte militância dos nossos exilados, na denúncia sistemática dos maus-tratos aos presos políticos brasileiros.
As pressões do governo Carter ajudaram na época a acelerar a abertura política e a atenuar o sofrimento de quem combatia o regime. É uma dívida que a democracia brasileira e os militantes da esquerda brasileira têm com o ex-presidente americano. Talvez não seja confortável para a biografia de alguns, mas é um fato.
Aliás, um problema enfrentado pela Boeing na concorrência agora para a venda dos caças à FAB vem dali: a dúvida entre os nossos militares sobre a confiabilidade dos parceiros americanos, dado o contencioso político e humanitário daquela época. Não deixa de ser curioso, ou ao menos paradoxal —visto que a atual administração brasileira inclui gente cujo sofrimento foi amenizado pela política de Carter.
Mas assim é a vida. De prático, interessa que agora Brasil e Estados Unidos voltam a estreitar relações militares. É a resultante de dois movimentos simultâneos do governo Luiz Inácio Lula da Silva: buscar novos espaços para afirmar a identidade brasileira no plano internacional, mas sem colocar em dúvida nosso campo de alianças — especialmente bélicas — no hemisfério.
Na concorrência dos caças, por exemplo, o Brasil exerce sua soberania, mas dentro de limites rigorosamente definidos. Dos três finalistas, um é americano e os demais são empresas de países aliados dos Estados Unidos. O assunto foi delimitado. Tirada a retórica, sobra a disputa comercial. E só.
A estratégia é parecida com a adotada por correntes da esquerda social-democrata na Europa Ocidental do pós-guerra. Aderiram ao “atlantismo” (referência à Organização do Tratado do Atlântico Norte, a aliança militar comandada por Washington), e assim deixaram de ser ameaça à hegemonia dos Estados Unidos, na época envolvidos com a Guerra Fria.
Uma troca razoável, que ajudou a garantir aos principais países europeus meio século seguido de estabilidade democrática e paz. Coisa inédita na vida recente do continente. Quem olha a Europa ocidental próspera e pacífica de hoje e vê ali uma dádiva da natureza deveria debruçar-se sobre o século e meio que vai das guerras napoleônicas ao fim da Segunda Guerra Mundial. Terá uma surpresa.
Talvez a Europa do pós-1945 seja um modelo a estudar. Uma região do mundo rapidamente recuperada do maior conflito bélico de todos os tempos, porque teve paz, estabilidade e investimentos maciços, inclusive em capital humano.
Foi um exemplo de recuperação não alicerçada em corridas armamentistas, ao contrário do entreguerras, o cenário do caldo de cultura para nazistas e fascistas.
Alguém duvida do efeito que terá na América do Sul meio século de democracia, ausência de conflitos militares e aceleração dos investimentos? Adaptado o mote de Juscelino Kubitschek, seriam 500 anos em 50.
E o Brasil emergirá maior e mais forte. Num cenário sem conflagrações regionais e sem ingerências externas, nossa liderança regional é automática. Ninguém aqui perto tem território, economia ou população para competir conosco.
É inclusive nosso principal cacife para ambicionar as cadeiras mais importantes da diplomacia mundial.
O presidente da República fala com frequência, e torna quase “natural” o analista usar os discursos dele como matéria prima.
Mais eficaz, entretanto, é prestar atenção ao que Lula faz. Em vez de só enxergar — ou ouvir — o que ele diz.
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4 Comentários:
Alon Feuerwerker,
Dentro de certas limitações sou um admirador de Jimmy Carter. Recentemente em um ou outro blog onde comento tive oportunidade de lembrar que foi Jimmy Carter e não Ronald Reagan quem indicou Paul Volcker para presidente do Banco Central Americano e que foi Paul Volcker que acabou com a inflação que chegou a 12% nos Estados Unidos. E se levarmos em conta que os preços das commodities tiveram o auge quando Paul Volcker assumiu a presidência do FED e ao cair quebraram quase todos os países em via de desenvolvimento e que só 30 anos depois os preços dessas commodities voltaram ao pico do final da década de 70, é de se imaginar que Paul Volcker teve mais influência sobre as ditaduras nos países em desenvolvimento do que Jimmy Carter.
É por isso que quando eu li essa passagem no seu post:
"As pressões do governo Carter ajudaram na época a acelerar a abertura política e a atenuar o sofrimento de quem combatia o regime",
Fiquei pensando se você não queria dizer o contrário.
Clever Mendes de Oliveira
BH, 14/04/2010
O antiamericanismo europeu vem daí, do fato que a Europa tem uma dívida enorme com os EUA e não querem admitir.
" É uma dívida que a democracia brasileira e os militantes da esquerda brasileira têm com o ex-presidente americano. Talvez não seja confortável para a biografia de alguns, mas é um fato", Alon FEUERWERKER.
C ta certo Alon, também devemos a agradecer.
Tem umm dado econômico interessante que eu ouvi hoje na Hora do Brasil, é sobre os BRICs: o radialista se referia a um dado do Banco Mundial que relatava o desenvolvimento do comércio mundial e o peso dos BRICs nele, que passara de 5% para 15% entre 2002 e 2008, e que em 2014 poderá chegar a 60%, para demonstrar a importância que esse grupo econômico terá no futuro, (com certeza temos o crescimento assimétrico da China no grupo) mas, de fato a importância do Brasil deve significar muito para os EUA. Estive no mês passado num Fórum Internacional no Rio sobre Cidades, e a delegação americana era a de mais alto nível, com muitos secretários de estado e o próprio embaixador Shanon esteve numa palestra espetacular, que na verdade foi espetacular pela presença do embaixador brasileiro Correia do Lago. O caso é que as falas do americanos eram reipeitabilíssimas em relação as iniciativas brasileiras para o setor de planejamento urbano e a realização do Fórum, a tal ponto que, derepente a mediadora que era brasileira, deu um 'peraí' no sentido de que era a iniciativa dos países da América Latina, e por aí vai...
Ismar Curi
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