E o physique du rôle? (06/04)
O PT descia o sarrafo nos bancos e hoje anda de mãozinha dada com o cartel. Com tucanos e democratas seria diferente?
Um efeito palpável da crise é a revogação de vetos, a queda de barreiras que impediam o debate de certos assuntos. Um tema que deixou o índex é o spread bancário, a diferença entre o juro que se cobra de quem pega emprestado e o juro pago ao poupador. O spread brasileiro é de longe o campeão mundial da usura. Mas nunca tinha entrado para valer na pauta da opinião pública. Habituamo-nos a achar um escândalo o deputadozinho embolsar alguns trocados com falcatruas na verba indenizatória. E é mesmo. Já o banco cobrar, sei lá, 10% ao mês no cheque especial por um dinheiro que lhe custa 1% sempre nos pareceu normal. Coisas do Brasil.
Mas nada resiste aos fatos. Após um longo torpor, a megacrise mundial das finanças empurrou o tema dos juros para o primeiro ponto da agenda nacional. O crédito secou e ficou ainda mais caro. O crescimento brasileiro na Era Lula deve-se em boa medida ao crédito abundante. Com mais crédito, o governo criou a demanda -e os empresários saíram atrás dos clientes. Empresários munidos daquele “espírito animal” de que costuma falar o ex-ministro Delfim Netto. Mas o fenômeno tem duas mãos. Se as torneiras do crédito estão secas e a confiança do consumidor anda em baixa, é natural que os empresários se retraiam e deem prioridade ao caixa, em vez do market share.
O debate sobre os juros não é fácil de ser travado. Há todo um aparato ideológico a repetir incansavelmente que o alto spread nacional se deve à inadimplência. Ou seja, os bons pagadores pagam pelos maus. Isso é martelado como verdade absoluta. Falta porém a comprovação científica. Será que somos o povo mais caloteiro do mundo? Que números provam isso? A academia, aliás, começa a ir na contramão da tese. Um estudioso do assunto, o economista e professor da USP Márcio Nakane, após analisar tecnicamente as possíveis relações de causalidade entre spread e inadimplência no Brasil, descobriu que não se pode culpar a inadimplência passada pelo spread. Mas, vejam só!, o professor concluiu também que é possível dizer o inverso: que o spread é causa de inadimplência.
Mesmo sem ter estudado economia, qualquer cidadão sabe disso. Entrou para valer no cheque especial? Peça a Deus por sua alma. Ou então prepare-se para a quebra. Enrolou-se no empréstimo consignado? Reze, mas reze muito por um milagre. Aliás, o consignado é um exemplo das contradições da política de Lula. É bom que a modalidade tenha se expandido? É ótimo. Mas por que cobrar um spread de, digamos, 20 pontos percentuais numa modalidade praticamente sem risco? Ainda mais se o tomador é um funcionário público?
Infelizmente, parece faltar ao governo a vontade necessária para atacar o problema de frente. E isso quando temos em palácio gente que passou a vida dizendo que se chegasse ao poder daria um jeito nos bancos. Aliás, é hora de o PT abrir o olho. Num sistema como o nosso, com mandatos de oito anos na prática (com um plebiscito no meio), o nome que representa a tentativa de um terceiro período consecutivo para o mesmo grupo político precisa responder a uma pergunta simples mas potencialmente letal. Se diz que vai fazer tal e qual coisa, por que então não fez nos oito anos em que ocupou a cadeira? O povo é sábio.
Sempre há porém um jeitinho de construir o discurso para explicar os porquês. O PT pode dizer que o juro alto é herança estrutural, e que lamentavelmente não foi dado ao partido poder suficiente para mexer nesse vespeiro. A solução? Mais quatro anos para o PT. E com mais musculatura. Seria engenhoso. Transformar a fraqueza em força. Resta saber se colaria. Mas o PT tem outra carta na manga. O eleitor olha para a oposição e não vê nela o physique du rôle, para usar a expressão dos franceses quando querem designar alguém adaptado ao papel que desempenha. O PT descia o sarrafo nos bancos e hoje anda de mãozinha dada com o cartel. Com tucanos e democratas seria diferente?
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
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Um efeito palpável da crise é a revogação de vetos, a queda de barreiras que impediam o debate de certos assuntos. Um tema que deixou o índex é o spread bancário, a diferença entre o juro que se cobra de quem pega emprestado e o juro pago ao poupador. O spread brasileiro é de longe o campeão mundial da usura. Mas nunca tinha entrado para valer na pauta da opinião pública. Habituamo-nos a achar um escândalo o deputadozinho embolsar alguns trocados com falcatruas na verba indenizatória. E é mesmo. Já o banco cobrar, sei lá, 10% ao mês no cheque especial por um dinheiro que lhe custa 1% sempre nos pareceu normal. Coisas do Brasil.
Mas nada resiste aos fatos. Após um longo torpor, a megacrise mundial das finanças empurrou o tema dos juros para o primeiro ponto da agenda nacional. O crédito secou e ficou ainda mais caro. O crescimento brasileiro na Era Lula deve-se em boa medida ao crédito abundante. Com mais crédito, o governo criou a demanda -e os empresários saíram atrás dos clientes. Empresários munidos daquele “espírito animal” de que costuma falar o ex-ministro Delfim Netto. Mas o fenômeno tem duas mãos. Se as torneiras do crédito estão secas e a confiança do consumidor anda em baixa, é natural que os empresários se retraiam e deem prioridade ao caixa, em vez do market share.
O debate sobre os juros não é fácil de ser travado. Há todo um aparato ideológico a repetir incansavelmente que o alto spread nacional se deve à inadimplência. Ou seja, os bons pagadores pagam pelos maus. Isso é martelado como verdade absoluta. Falta porém a comprovação científica. Será que somos o povo mais caloteiro do mundo? Que números provam isso? A academia, aliás, começa a ir na contramão da tese. Um estudioso do assunto, o economista e professor da USP Márcio Nakane, após analisar tecnicamente as possíveis relações de causalidade entre spread e inadimplência no Brasil, descobriu que não se pode culpar a inadimplência passada pelo spread. Mas, vejam só!, o professor concluiu também que é possível dizer o inverso: que o spread é causa de inadimplência.
Mesmo sem ter estudado economia, qualquer cidadão sabe disso. Entrou para valer no cheque especial? Peça a Deus por sua alma. Ou então prepare-se para a quebra. Enrolou-se no empréstimo consignado? Reze, mas reze muito por um milagre. Aliás, o consignado é um exemplo das contradições da política de Lula. É bom que a modalidade tenha se expandido? É ótimo. Mas por que cobrar um spread de, digamos, 20 pontos percentuais numa modalidade praticamente sem risco? Ainda mais se o tomador é um funcionário público?
Infelizmente, parece faltar ao governo a vontade necessária para atacar o problema de frente. E isso quando temos em palácio gente que passou a vida dizendo que se chegasse ao poder daria um jeito nos bancos. Aliás, é hora de o PT abrir o olho. Num sistema como o nosso, com mandatos de oito anos na prática (com um plebiscito no meio), o nome que representa a tentativa de um terceiro período consecutivo para o mesmo grupo político precisa responder a uma pergunta simples mas potencialmente letal. Se diz que vai fazer tal e qual coisa, por que então não fez nos oito anos em que ocupou a cadeira? O povo é sábio.
Sempre há porém um jeitinho de construir o discurso para explicar os porquês. O PT pode dizer que o juro alto é herança estrutural, e que lamentavelmente não foi dado ao partido poder suficiente para mexer nesse vespeiro. A solução? Mais quatro anos para o PT. E com mais musculatura. Seria engenhoso. Transformar a fraqueza em força. Resta saber se colaria. Mas o PT tem outra carta na manga. O eleitor olha para a oposição e não vê nela o physique du rôle, para usar a expressão dos franceses quando querem designar alguém adaptado ao papel que desempenha. O PT descia o sarrafo nos bancos e hoje anda de mãozinha dada com o cartel. Com tucanos e democratas seria diferente?
Coluna (Nas entrelinhas) publicada hoje no Correio Braziliense.
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8 Comentários:
Muito bom, Alon. Permita-me, porém, uma afirmação: isto sim é que é herança ruim. E o pior é que os herdeiros somos nós.
Swamoro Songhay
Alon, não somos o povo mais caloteiro mas temos o Estado mais caloteiro do mundo. Os números da dívida judicial do Estado comprovam: quase 100 bilhões de reais.
Pode-se dizer que esse é o tamanho da ineficiência - e da cara de pau - dos governantes brasileiros, já que o Estado não tem cara.
Note-se que, como quem legisla pra valer é o Executivo, ele não cumpre nem a legislação que ele mesmo produz!
Alon,
sou aluno de economia da USP e já tive aula com o professor Nakane (Macroeconomia II).
A primeira lição que aprendemos ao estudar econometria (a "ciência" que estuda os "fenômenos" econômicos por meio da estatística) é que é impossível estabelecer uma relação causal via estatística. Ora, a estatística só aponta a existência de uma correlação! A causalidade deve ser originada na teoria. Ou seja,no raciocínio dedutivo, algumas vezes até no indutivo.
Impressionante não?! Os professores ainda divulgam artigos desse tipo. É desmoralizador. A impressão que todos têm sobre economista é realista. Eles sabem "enrolar" os outros e acrescentam pouco às discussões.
Gregório Zalaf
Ainda do fracasso do G-20 e da "revolução" ::
No blog, Paul Krugman avaliou como "melhor do que eu esperava, com algo substantivo e importante emergindo: fundos bem maiores para as instituições internacionais e a expansão do crédito comercial". Até a irônica "Economist", na manchete "G-Force", avaliou que "o resultado foi melhor que nada"
"Melhor do que nada" é sensacional. Por esse critério, qualquer coisa é positiva. O gradualismo radical serve para isso mesmo, para justificar qualquer coisa, inclusive a inação. É o tal "processo" sempre evocado pelo Fernando Henrique quando precisava explicar por que o governo dele não fazia nada.
No Governo FHC foram criadas as Agências Reguladoras, a LRF, restabelecida a capacidade do Governo em fazer políticas Fiscal e Monetária, fundamentos que propiciaram a estabilidade monetária, além de programas de proteção social e transferência de renda.
O Plano Real foi um plano de estabilização e não de crescimento. Com ele foram criadas bases macroeconômicas e institucionais mais sólidas e transparentes quanto às contas públicas das três esferas de Governo.
O Governo atual também fala em processo quando cita o PAC, o Bolsa Família, a exploração do pré-sal, Fundo Soberano e as ações anticrise.
Swamoro Songhay
@ Anonimo,
Para filho, vc não lê a Economist não? Vc acha que ela ia soltar fogos com uma reuniao de politicos? Vc já viu isso acontecer alguma vez, em alguma ediçao? Sem contar que o bastiao da economia liberal já está tendo que fazer contorcionismo demais pra entender a crise, imagine aceitar a intervençao estatal e o fim dos paraisos fiscais?
Gregório:
Se você ainda não ouviu falar, talvez você se interesse pelo trabalho de Nassim Taleb. O cara passou a juventude trancado estudando matemática durante a guerra civil libanesa e acabou desmistificando os métodos que buscam prever os riscos do futuro com base nos dados do passado, com base em fractais, bom humor e quetais.
Hoje ele é paparicado em Davos junto com Nouriel Roubini.
Dê uma olhada em www.fooledbyrandomness.com
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