Há uma polêmica interessante nesta passagem dos 40 anos do
Ato Institucional número 5 (AI-5). Abro um parêntese. É curioso que o aniversário do golpe dentro do golpe seja lembrado, enquanto permanece a indiferença quanto a um
outro 13 de dezembro, dez anos depois, em que o AI-5 foi finalmente revogado. Recorda-se o golpe, mas não a extinção do instrumento jurídico que o cristalizou. Curioso. Fecho o parêntese. O debate atual sobre as razões para o AI-5 envolve, como dizia antes dos parênteses, um aspecto que merece reflexão. Tostines vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais? O aprofundamento da ditadura foi uma reação à esquerda armada ou a esquerda armada foi uma resposta ao aprofundamento da ditadura? O debate vem sendo travado de forma esquemática, talvez porque isso interesse aos atuais protagonistas da política brasileira. O PT é um partido que tem no DNA a contribuição dos remanescentes da guerrilha urbana. Que se uniram ao sindicalismo comandado por Luiz Inácio Lula da Silva e à esquerda católica para criar a legenda hoje dominante no Brasil. Daí por que a polêmica esteja, digamos assim, abastardada (sem querer ser politicamente incorreto). Aos petistas e aliados interessa apresentar a luta armada dos anos 60 e 70 do século passado como um contramovimento democrático legítimo, quando todos os demais canais de resistência haviam supostamente se fechado. O que não é verdade. Eleições, por exemplo, continuaram a acontecer durante toda a ditadura. O horário eleitoral gratuito, por exemplo, foi inventado em plena ditadura. E aos adversários do PT interessa apontar o AI-5, e a ultraditadura que ele trouxe, como uma reação à guerrilha. Que chamam de "terrorismo". O que tampouco é verdade. Aliás, não houve terrorismo no Brasil naquela época. Houve guerrilha. Escrevi em
Reconhecer o patriotismo alheio:Há uma diferença conceitual entre guerrilha e terrorismo. A guerrilha se caracteriza pela disposição de combater assimetricamente uma força armada regular ou um poder constituído. O terrorismo se caracteriza pela disposição de infligir morte e sofrimento à população civil, com objetivos políticos.A não ser que você seja um propagandista, ou esteja viciado em propaganda, convença-se disso. Guerrilha é uma coisa. Terrorismo é outra coisa. Tome cuidado com os conceitos, porque nos exercícios de maniqueísmo a História se converte numa caricatura de si mesma e você acaba perdendo o pé. Vamos aos fatos. O Brasil percorreu o século 20 como um país de pouco apreço pela estabilidade democrática, com a vida política sendo marcada, à esquerda e à direita, pelo recurso à violência e aos golpes de estado. A
Revolução de 1930, que desbloqueou o caminho para a construção da moderna democracia em nosso país, foi um golpe de estado. A
redemocratização de 1945 foi consumada num golpe de estado. Juscelino Kubitschek só tomou posse em 1955 porque
o marechal Henrique Teixeira Lott deu um golpe de estado. O golpe foi também o instrumento para implantar o
Estado Novo em 1937, assim como para derrubar
João Goulart em 1964 e impedir a posse do vice
Pedro Aleixo quando
Artur da Costa e Silva ficou doente em 1969. Esses foram golpes que deram certo. Um que não deu certo foi o de
1935, quando os comunistas tentaram tomar o poder num levante militar, depois de verem seu projeto político legal, a Aliança Nacional Libertadora(ANL), ser colocado na ilegalidade por
Getúlio Vargas. Outro golpe abortado foi o de 1954, quando a direita pretendia emparedar Vargas e foi emparedada por ele, que meteu uma bala no coração e virou o jogo. Estude o Brasil do século 20 e você verá um país marcado por rupturas (e tentativas de rupturas) institucionais. O relativo consenso em torno da via democrática para o poder no Brasil é coisa recente, de um quarto de século para cá. Um consenso moldado por, pelo menos, duas circunstâncias. A primeira foi a chegada aqui do chamado
eurocomunismo, resultado direto da reflexão produzida no Partido Comunista Italiano depois da queda de
Salvador Allende no Chile. A segunda foi a completa derrota militar aqui da guerrilha, urbana e rural. O que compeliu a esquerda, em alguns casos a contragosto, a atuar politicamente por meio de formas de luta "mais atrasadas", como se dizia na época. Coisas como disputar eleições pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), organizar entidades estudantis de massa e movimentos populares. Até a formação do PT, em 1980, ainda havia na esquerda quem defendesse o voto nulo. Lembro bem de um debate que fizemos na Faculdade de Medicina da USP na eleição municipal de 1976. Foi na "Sala do sono" (nome sintomático; existe ainda?) do Centro Acadêmico "Oswaldo Cruz" (CAOC,
veja a relação dos presidentes). Era para ser uma discussão em torno de candidatos, mas acabou virando uma polêmica sobre o voto no MDB versus o voto nulo. Isso em 1976, dois anos depois de o MDB impor uma derrota duríssima à Aliança Renovadora Nacional, a Arena, o partido da ditadura. O voto nulo era alimentado na época por dois vetores principais. Havia a posição de uma parte das
organizações trotskistas, que se opunham à participação em partidos que não fossem operários. E havia a posição de remanescentes da guerrilha, que se recusavam a aceitar um fato: a luta armada no Brasil havia sido derrotada. Ora, se a via armada no Brasil tivesse sido apenas um caminho radical para reagir à ditadura, seria natural que quando os caminhos democráticos se abriram, com o resultado de 1974, os sobreviventes do militarismo aderissem entusiasticamente à via pacífica. Não foi o que aconteceu. Mesmo com todos os sinais de temor dados pelo regime (
Lei Falcão, Pacote de Abril) diante do crescimento da oposição legal, permaneciam as ressalvas dos herdeiros políticos de Carlos Marighella.
Eu sei porque vi, participei e polemizei. Não é de ouvir falar. A verdade histórica é que a luta armada no Brasil surgiu como uma alternativa para a tomada do poder pela esquerda, depois do que se acreditava tivesse sido o colapso final do
assim chamado populismo. Como a frágil democracia brasileira não havia conseguido resistir ao golpismo da direita, golpismo estimulado pelo temor nas elites e na classe média diante da ascensão política das massas populares urbanas, um pedaço da esquerda, muito influenciado pelas revoluções em Cuba e na China, concluiu-se que a democracia, da forma que existira entre 1945 e 1964, havia partido para não mais voltar. E que se tratava de recorrer à violência revolucionária para superar (destruir) o Estado burguês. Leia
Fidel no Chile de Allende, do site
Gramsci e o Brasil. Por isso é que
eu concordo com Lula: precisamos tratar os combatentes dos anos 60 e 70 não como vítimas, mas como o que foram, militantes que fizeram uma opção pela via chamada de revolucionária. E o outro lado? Dizer que o endurecimento do regime de 64 se deveu à eclosão da guerrilha é uma falsificação histórica. A direita deu o golpe e o aprofundou, com os atos institucionais e os casuísmos, para evitar não a tomada do poder pelos guerrilheiros, mas para impedir que a oposição chegasse ao poder pela via eleitoral.
Israel Pinheiro e
Negrão de Lima, cujas vitórias nas urnas mineiras e cariocas em 1965 provocaram o
AI-2 em 1966, não eram da guerrilha. Eu não vou me estender sobre isso. Quem estiver curioso ou tiver dúvidas, que leia os
livros do Elio Gaspari sobre a ditadura, a obra definitiva sobre como os grupos militares, articulados a facções civis, digladiaram-se por duas décadas para continuar no poder, ou chegar a ele. E leia também
31 de março, há 42 anos.
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