
Li com atenção a
encíclica papal divulgada ontem. A
Igreja Católica aponta a absolutização do
racionalismo e o abandono da fé cristã como fontes siamesas do mal. Corretamente (de um ângulo metodológico), indica a
Revolução Francesa como ponto nodal desse processo segundo ela maligno. E, naturalmente, identifica no marxismo e no movimento histórico que mais bem o materializou, a
Revolução Russa, um desdobramento lógico e concentrado do
iluminismo. Como escrevi em
O ódio à lembrança dos mortos reflete o medo na alma dos vivos, vive-se um ambiente de
Congresso de Viena. Daí as crescentes dificuldades dos liberais para se manterem sobre a sela de seu
liberalismo, enquanto o touro bravo da reação política e filosófica corcoveia por baixo deles, liberais. É sintomático o atual casamento de conveniência entre os supostos campeões da individualidade, da liberdade individual, e os críticos ferozes do liberalismo e da ruptura política que abriu caminho para sua hegemonia -a Revolução Francesa. Sintomático de que o liberalismo encontra seu limite num mundo no qual a ampliação de direitos democráticos implica questionar as bases em que se organiza uma sociedade fundada na supremacia do indivíduo sobre a coletividade. Nesse aspecto, a nova ofensiva do Papa Bento 16 contra o marxismo é uma das maiores homenagens que se poderiam prestar no nonagésimo aniversário de Outubro. Obrigado, Santo Padre. Eu tenho um profundo respeito pela Igreja de
Pedro. Tanto que me insurgi contra o pseudolaicismo de quem quis enodoar a visita de
Bento 16 ao Brasil este ano (
Quando a Igreja ajudava a combater a ditadura ninguém berrava pelo "estado laico"). Só que de vez em quando me permito discordar do Papa. Até porque a Igreja é uma organização de homens. Portanto falível. Donde não ser razoável que ela se arrogue o direito de definir, de modo absoluto, os limites entre o certo e o errado (
Equívocos esclesiásticos e a dívida com Pombal). A Igreja já incorreu em erro e pecado no passado, e muito. A Igreja não apenas conviveu com a
tortura, mas adotou-a quase como parte de sua liturgia, na
Inquisição. A Igreja já chancelou o genocídio, no episódio da
colonização espanhola na América.
A Igreja foi suave com o nazismo e o fascismo, quando isso lhe era conveniente (
na foto, o Papa Pio 12). E os erros eclesiásticos não são apenas pretéritos. Alguém discorda de que a Igreja é leniente com os múltiplos casos de
pedofilia entre os padres? Mas este post não é para falar mal da Igreja Católica. Diz o Papa em sua encíclica que a salvação não é obra do homem, mas de Deus. E que inverter essas bolas resulta em coisas monstruosas. Da leitura da encíclica papal restou-me pelo menos uma dúvida. Até que ponto devem os homens e mulheres enfrentar as injustiças? (Leia
O El País talvez ache que Petáin foi um herói.) Entre os trechos claríssimos da encícilica há este:
O cristianismo não tinha trazido uma mensagem sócio-revolucionária semelhante à de Espártaco, que tinha fracassado após lutas cruentas. Jesus não era Espártaco, não era um guerreiro em luta por uma libertação política, como Barrabás ou Bar-Kochba. (...) Os homens que, segundo o próprio estado civil, se relacionam entre si como patrões e escravos, quando se tornaram membros da única Igreja passaram as ser entre si irmãos e irmãs –assim se tratavam os cristãos mutuamente. (...) Apesar de as estruturas externas permanecerem as mesmas, isto transformava a sociedade a partir de dentro. Se a Carta aos Hebreus diz que os cristãos não têm aqui neste mundo uma morada permanente, mas procuram a futura (cf. Heb 11, 13-14; Fil 3,20), isso não significa de modo algum adiar para uma perspectiva futura: a sociedade presente é reconhecida pelos cristãos como uma sociedade imprópria; eles pertencem a uma sociedade nova, rumo à qual caminham e que, na sua peregrinação, é antecipada.Aí está. O que antecipa a nova sociedade não é lutar contra as injustiças da atual, mas incorporar-se à peregrinação liderada por Jesus Cristo. E os "patrões e escravos" passam a ser "irmãos e irmãs". Em miúdos, é o que segue. Se o sistema estrutura-se de modo a que o trabalhador comum esteja condenado a enfrentar uma velhice miserável, enquanto seu patrão, a quem enriqueceu com o seu trabalho por décadas, goza de uma velhice em meio à abundância, isso é uma injustiça, sim. Mas que pode ser enfrentada se ambos, escravos e patrões, unirem-se numa peregrinação comum, sob o comando do herdeiro do trono de Pedro. Eis a distinção essencial: a afirmação ou a negação da luta de classes. O conflito social ou a arbitragem de uma entidade superior -no caso a Igreja. Chegamos ao ponto em que se explicam parte das dificuldades do catolicismo em regiões como a nossa, na qual a época política é marcada pela emergência de grupos sociais majoritários, historicamente oprimidos. Em situações como a da
convulsionada América Latina, as palavras do Papa permitem uma leitura convenientemente reacionária. Em lugar de nacionalizações e de redistribuição forçada de riquezas, as missas e a caridade. É uma semeadura que, obviamente, não encontra terreno tão fértil assim nas massas exploradas e massacradas do continente americano, ao sul do
Rio Grande. Até porque, convenhamos,
a Igreja Católica assistiu de braços cruzados em nossos países a séculos em que o direito à força foi largamente utilizado por um dos lados. Agora, acontece a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar. E infelizmente, talvez por causa mesmo de sua passividade histórica (ditada filosoficamente?), a hierarquia de Roma não está em condição de oferecer-se como mediadora. Ou de fazer crer que a comunhão em Cristo possa substituir com vantagem a luta entre oprimidos e opressores. Talvez seja mesmo uma pena a Igreja estar enfraquecida a esse ponto. Recente
reportagem da revista Veja (mais uma) contra a esquerda contém a seguinte passagem:
A tentativa soviética de extirpar do novo homem tudo o que fosse humano e natural resultou, como era de esperar, no fim do comunismo e na sobrevivência do que é humano e natural."Humano e natural", depreende-se da leitura da reportagem, é um sistema que, para tristeza do Vaticano, elege a competição e o individualismo como ícones absolutos. E é fato que a violência e a selvageria são 100% "humanos" e "naturais". Tudo bem, então. Só que, se os termos da disputa são esses, não vale reclamar quando a lógica da força bruta começa a favorecer o outro lado.
Clique aqui para assinar gratuitamente este blog.Para mandar um email ao editor do blog, clique aqui.Para inserir um comentário, clique sobre a palavra "comentários", abaixo.