A professora Olgária Matos, titular do Departamento de Filosofia da USP, intervém hoje, em
artigo na Folha de S.Paulo, no debate desencadeado pela morte do menino João Hélio Fernandes Vieites. Coloquei o texto dela,
Antinomias do Brasil, na seção
Textos de outros, logo abaixo, na coluna direita deste blog. Ela escreve no âmbito da polêmica suscitada
pelo seu colega Renato Janine Ribeiro, que alguns dias atrás publicou artigo no jonal fazendo referência à pena de morte.
Para ler o texto de Janine, clique aqui. Vamos ao pensamento de Olgária. Ela começa assim:
"Em recente entrevista, o governador do Rio de Janeiro afirmou que a violência no Brasil é inteiramente contornável, pois nosso 'processo civilizatório' é 'irreversível'. Para fundamentar seu ponto de vista -diariamente desmentido-, se voltou para o 'desenvolvimento econômico' anunciado. É em um quadro em que o econômico justifica a violência, o 'social' a explica e o bovarismo vê civilização onde não há projeto civilizatório que deveria ser entendido o artigo do professor Renato Janine Ribeiro (Mais!, 18/2). Ninguém defende pena de morte e tortura. Fazê-lo seria gravíssimo. Mas também preocupante seria se, ante a procissão de horrores em que vive o país, um indivíduo respondesse a eles com neutralidade e impessoalidade. Adorno anotou em 'A Educação após Auschwitz' que um dos traços da sociedade totalitária é a perda da capacidade de identificação com a dor do outro, o desaparecimento da compaixão -tristeza mimética que faz de quem sofre outro nós-mesmos."Ninguém respondeu à minha pergunta, repetida várias vezes aqui neste blog, sobre até que idade alguém poderá matar outra pessoa sem receber a punição devida pelo seu crime. À luz dos argumentos "sociais" dos defensores da
intocabilidade do artigo 228 da Constituição Federal, fiz até uma provocação intelectual, perguntei se não deveríamos, então,
estabelecer também uma "menoridade social". Ou seja, se o adolescente tem o direito de matar porque é pobre, por que não estender esse direito também ao pobre que já deixou de ser adolescente? Essa é mais uma pergunta para vocês. Atrevo-me a colocar esse ponto como um corolário das idéias desenvolvidas pela professora Olgária. Que segue:
"Um crime cruel é, em si, irreversível, não tem perdão. Pois, assim como o perdão só pode ser pedido por quem cometeu um crime ou uma ofensa, o ato de perdoar só pode ser concedido diretamente pela vítima. O que Renato Janine escreveu é que, justamente por não haver procuração dada por quem foi silenciado, cada um de nós não tem o direito de perdoar e, por isso, o crime permanece, no âmbito moral, irreparável. No artigo, ele não perdoa. Não tendo sido a vítima imediata dessa violência, perdoar, para ele, seria imoral. Apesar de concebida em âmbito religioso por Jesus Cristo, a faculdade de perdoar foi enunciada em um sentido secular: 'Deus perdoa nossas dívidas assim como nós perdoamos nossos devedores'. A Igreja Católica, ao defender, com razão e humanidade, a dignidade de toda pessoa, põe em ação as palavras de Cristo: 'Perdoai, Senhor, eles não sabem o que fazem'. Restaria saber até que ponto os assassinos de hoje são inocentes. E quem o arbitra é o Estado."Leia, se lhe interessar,
O direito divino de interditar indefinidamente um debate. E o trabalhador que não existe, post desta semana. Mas continuemos com Olgária, no seu trecho mais importante:
"Quanto a isso, surpreendem as declarações oficiais. Na segunda-feira, o presidente da República disse que qualquer um poderia ser levado a cometer um crime como o que atingiu a criança no Rio de Janeiro. A psicanalista professora titular do Instituto de Psicologia da USP Maria Inês Assumpção Fernandes observou a estranheza dessa afirmação. A impossibilidade de discernir quem é a vítima e quem é o agressor, diz ela, ocorre em situações de terror, seja o promovido pelo Estado, seja o vivido pela sociedade. O artigo em questão [de Janine] nos leva a perguntar se não são as atitudes dos poderes públicos que trazem de volta a lei do sangue."Eis o problema. Se "todos nós" somos "responsáveis" pela "pobreza" no Brasil , e se a "pobreza" é a causa última de crimes hediondos cometidos por quem não está exatamente no topo da pirâmide social, os verdadeiros assassinos do João Hélio somos "todos nós", especialmente quem, por alguma razão, ganha acima de uma certa faixa de renda [De volta à
minha questão sobre a "menoridade social": qual é a renda familiar máxima a partir da qual o indivíduo deixa de ter o direito de matar fria e cruelmente o semelhante e não receber a punição prevista em lei?]. Então, se formos punidos, se tivemos filhos mortos com requintes de crueldade por bandidos, deveríamos receber isso como um castigo justo. Se formos pobres e tivermos filhas estupradas e mortas na volta para casa numa rua sem iluminação, deveríamos nos orgulhar de elas terem sido imoladas no combate por uma sociedade mais justa [daí para os homens-bomba, faltam só os explosivos]. Mas, se, apesar de tudo, tivermos a sorte de escapar, de criar nossos filhos, de chegar à velhice embalando nossos netos, agradeçamos à clemência do imperador. Que adquiriu poderes divinos ao incorporar o espírito das vítimas, para poder decidir, soberanamente, quem deve ser perdoado e quem não. De volta à professora Olgária:
"Entenderam mal o pensamento de Renato Janine tanto os que o elogiaram, pretendendo que o professor defende o direito de matar do Estado, quanto os que o atacaram pela mesma razão. Não é porque o capitalismo contemporâneo é pulsional e infantilizante, porque produz uma educação e uma cultura para a qual a atividade do pensamento é próxima a zero que o
Estado teria direito ao assassinato frio -que é a pena de morte-, e o criminoso, à indulgência da lei. O que o ensaio de Renato Janine dá a pensar é, entre outras coisas, se, ao dar-se preferência ao aspecto educativo da lei, suprimindo, na prática, seu caráter punitivo, e se, na comedida e prudente atitude dos representantes da lei e instituições humanitárias, não se expressa a idéia de que as condições materiais de existência explicam o crime e as condições sociais e penitenciárias o justificam."Vê-se que a professora é contra a pena de morte. É um direito dela pensar assim. O que não se deve interditar é o direito de pensar diferente. A sociedade brasileira vai fazer mais esse debate. Entretanto, o mais importante é responder à pergunta colocada nas últimas linhas desse trecho. Sim, professora Olgária, a "comedida e prudente atitude dos representantes da lei e instituições humanitárias"
(humanitárias?) expressa exatamente "a idéia de que as condições materiais de existência explicam o crime e as condições sociais e penitenciárias o justificam". Lamentavelmente, o establishment político brasileiro, que se considera progressista, não concorda com a senhora, não acha que "é tão infamante jovens e adultos serem trucidados em favelas e queimados em pneus quanto o é qualquer ser humano sê-lo em ônibus ou nas ruas da cidade, independentemente de sua extração social". Sabe por quê, professora? Porque uma parte da esquerda brasileira parece ter dado seu adeus definitivo ao humanismo. Uma parte do progressismo nacional aceita (gostosamente) andar de mãos dadas com a barbárie, se isso lhes for politicamente útil. Estamos numa daquelas situações em que os caminhos se separam, professora. Um daqueles momentos na História em que companheiros ocasionais de viagem se despedem. Por isso, receba minha sincera admiração. Por arriscar-se, assim como o seu colega Janine, a desafiar os ideólogos da barbárie "libertadora". E a senhora conclui:
"Trauma após trauma, pode-se opinar o que se quiser sobre delinqüentes e seus crimes, só não há como dizer que se trata de "crime famélico". Esses jovens estão cheios de mensagens, e uma delas é a de não quererem só comida. Assim como é falta de pudor a mídia brasileira freqüentemente operar com presunção de culpa, também deveria ser rechaçada indulgência com criminosos. Afinal, é só no Brasil que delinqüentes são tratados não por seus nomes próprios, mas por diminutivos e com linguagem afetiva. É cedo que se adquire consciência do que é assassinar, do que é permitido e do que é interdito, sem o que uma sociedade não é uma sociedade."Eis uma bela defesa da família e da escola. Não como pretextos para a impunidade, mas como vetores da civilização. Texto paradigmático, esse de Olgária Chain Féres Matos, professora titular de Filosofia da USP. Está demolido o mito da "menoridade social". E vocês, que sapatearam sobre as angústias intelectuais e emocionais do Renato Janine Ribeiro, têm agora a oportunidade de lutar como homens. Respondam ao que escreveu essa mulher.
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