Você sabe que na hierarquia deste blog, e na vida, é a realidade que subordina a coerência das idéias -e não o contrário. Então, apesar de ter dito que não voltaria ao assunto dos salários dos secretários estaduais de São Paulo, dou meia volta e retorno a ele. Não resisti. Não resisto a um debate, a uma polêmica, especialmente quando a lógica é a bola do jogo. Você bem sabe que o noticiário sobre a tentativa frustrada de equiparar o salário dos deputados e senadores ao dos juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) pariu duas expressões: "superaumentos" e "super-salários". A primeira denominação fez mais sucesso do que a segunda, e acabou se impondo. Talvez porque alguns formuladores de expressões de sucesso tenham lembrado de seus próprios contracheques. Tem gente para quem, definitivamente, não cai bem chamar R$ 24 mil de super-salário. Como é que ficaria na hora de pedir aquela promoção? O sujeito entra na sala do chefe para a conversa sempre difícil:
- Chefe, vim aqui pedir um aumento. As coisas foram bem neste ano, e eu ficaria muito feliz se a empresa considerasse a possibilidade de me dar uma promoção.
- Por quê? Você já ganha tão bem... O seu salário já é um super-salário. Quatro anos de moleza na faculdade, só matando aula, e você já ganha quase como ministro do STF. Já pensou quantas cestas básicas daria para comprar com o que você está pedindo de aumento?
- Mas, chefe, juiz do Supremo tem estabilidade, o cargo é vitalício. Na nossa profissão é bem diferente.
- Pois sabe que você acabou de me dar uma boa idéia?
Aí o super-salário virou superaumento, todos ficaram mais confortáveis e o escândalo ganhou nitidez. O argumento é, aparentemente, demolidor. Em tese, é insuportável para o cidadão comum ver deputados e senadores terem 90% de reajuste nos seus vencimentos quando a inflação está em 3% ao ano, uma das menores da História do Brasil. A falta de uma contestação minimamente estruturada a essa idéia, nascida do senso comum, levou o Congresso a ter que recuar e terminar a legislatura sem aprovar nenhum aumento de salário. Só que aí apareceu o assunto do reajuste dos secretários estaduais em São Paulo.
Seus proventos, por uma bonita coincidência, vão subir exatamente (ou aproximadamente) aqueles tais 90% , tão execrados na crise. E ainda tem gente que acha que Deus não existe. Ele não só existe como escreve certo por linhas tortas. O sujeito acaba de sair do meio da turba que está linchando o deputado federal (que também queria para si um aumento de 90%). O linchador esfrega na roupa as suas mãos ensangüentadas, dá uma respirada e explica:
- É diferente. O secretário em São Paulo ganha muito pouco. Só R$ 6 mil. Eles estão sem aumento desde 1995. É razoável que, pela importância do cargo, eles passem a ganhar R$ 11 mil. Agora me dá licença, que eu preciso ir ali chutar a cara daquele deputado de Tocantins.
Quando li esse argumento pela primeira vez eu me senti como acho que Isaac Newton se sentiu quando a maçã despencou da árvore. Ou Arquimedes, quando a banheira transbordou. Eureka! Esse exemplo simples (e fictício) nos leva a concluir que, até para os autoproclamados sacerdotes da austeridade, o aumento de 90% talvez se justifique, sim, em determinadas circunstâncias! Em outras palavras, o número de 90%, em si, não significa nada. Sozinho, não permite formar um juízo. E que, portanto, é necessário analisar caso a caso. Einstein estava certo quando afirmou que Deus é sutil, porém não malicioso. Se você não percebeu, a lógica acaba de enfiar uma estaca no coração da palavra superaumento. A luta política é um xadrez. Você não pode mexer as peças à vontade, existem regras. Só faz sentido usar "superaumento" se os 90% forem uma grandeza absoluta, como a velocidade da luz no vácuo (sempre ele, Einstein), ou como a inflação. Ou se se tratar, pelo menos, de uma grandeza estudada em um intervalo razoável. Pois sempre haverá, é claro, alguém que argumente assim:
- Essa sua última afirmação, sobre a tal grandeza absoluta, não faz sentido. Seria mais do que justo, por exemplo, dar um aumento de 90% para o salário-mínimo, se isso não arrebentasse os estados, os municípios e a previdência, e se não atingisse em cheio a classe média que tem empregada doméstica.
O argumento não vale, é bobinho e está fora da regra. Salários de R$ 12 mil (como o dos deputados e senadores) e de R$ 6 mil (como o dos secretários de São Paulo) são grandezas comparáveis. Estatisticamente e socialmente comparáveis. Vá ao site do IBGE e confira: não há uma diferença matematicamente significativa entre o número de brasileiros que ganham mais de R$ 6 mil e o número dos que ganham mais de R$ 12 mil. Enfiar o salário-mínimo nesse debate é trocar a lógica pela demagogia. É transgressão à regra. Cartão amarelo. Mais razoável seria recorrer ao sempre útil "está na cara":
- Está na cara que pagar R$ 6 mil a um secretário estadual em São Paulo é pouco. Pagando assim, você não vai atrair bons profissionais. R$ 11 mil é até menos do que deveria ser. Mais adequado seria pagar R$ 12 mil, ou até além disso.
Querem saber? Pois eu concordo. Plenamente. Mas aí aparece um probleminha lógico (sempre ela, a lógica, a nos assombrar). O presidente da República e os ministros ganham cerca de R$ 8 mil. O governador de São Paulo ganha em torno de R$ 14 mil. Qualquer estagiário de empresa de consultoria em Recursos Humanos concordará que é defensável o presidente do Brasil ter um salário 10% maior do que o do governador de São Paulo. Idem para os ministros, na comparação com os colegas secretários paulistas. Ou seja, como não li nenhum editorial clamando pela diminuição do salário do governador de São Paulo, concluo que o presidente deveria então ganhar uns R$ 16 mil. Os ministros, uns R$ 12 mil. Agora, me responda: o que a turma (falei turma, não turba) teria feito se, antes dessa confusão toda no Congresso, Luiz Inácio Lula da Silva tivesse proposto um "hiperaumento" (se 90% é super, 100% deve ser hiper) de 100% para si próprio e um de 50% para os ministros? Não precisa ter pressa para responder. Se quiser usar o feriado para refletir, fique à vontade. Porque eu agora vou ter que ir embora, tentar pegar um avião da TAM. Mais sofrimento. Infelizmente, este não é só o país da indignação seletiva. É também o país do caos nos aeroportos. Graças a Deus que, pelo menos, o segundo problema é mais fácil de resolver do que o primeiro.
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